Construindo a igualdade na diversidade

sexta-feira, 24 de agosto de 2012


Livro: Construindo a igualdade na diversidade: gênero e sexualidade na escola.
Autoras: Nanci Stancki da Luz, Marilia Gomes de Carvalho e Lindamir Salete Casagrande.
Edição: UTFPR, Curitiba, 2009.
P. 21 a 24 e 38 a 43

Gênero: Considerações sobre o conceito

“Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação a respeito de seu significado. Serve para classificar fenômenos os mais diversos tais como gêneros de literatura, de cinema, de música, dos seres vivos na escala biológica, enfim é um termo classificatório.”
A construção social do gênero é muito mais complexa do que simplesmente uma classificação das pessoas em mulheres ou homens. No campo das Ciências Sociais a complexidade é ainda maior porque depende das diferentes correntes teóricas que interpretam o gênero (mulher/homem) de formas diversas, ora considerando-o diretamente relacionado ao sexo, ou seja feminino=gênero feminino e sexo masculino=gênero masculino, ora desvinculando o gênero do sexo, sem que haja uma relação direta entre estes dois fenômenos. Para outras correntes há dois sexos, porém múltiplos gêneros.
O termo gênero possui portanto muitos significados, de acordo com as diferentes abordagens que existem sobre o fenômeno das construção social do masculino e do feminino pela sociedade e pela cultura. O conceito de gênero apresenta, diferentes concepções, diferentes focos de análise conforme, as bases teóricas que lhe servem de sustentação.
Nem sempre este foi o termo utilizado pelos cientistas da sociedade que até recentemente (anos 60) não se preocupavam com a construção social de mulheres e homens. Na verdade, no mundo acadêmico, o termo gênero surgiu no momento em que pesquisadores feministas buscavam, através dos chamados estudos sobre mulheres, desnaturalizar a condição da mulher na sociedade (SIMÃO, 2005).
Foram estudos feministas os que inicialmente tinham a intenção de desnaturalizar as condições das mulheres na sociedade, desconstruir a ideia de que tudo aquilo que se refere à mulher está na sua natureza feminina, ou seja, estes estudos problematizam a ideia de que determinadas características são de essência feminina e outras são de essência masculina. Nessa linha de pensamento fica entendido como natural e da sua essência que a mulher seja mãe, natural e da sua essência que seja delicada, sensível obediente, amorosa, afetiva, etc, como se tais características estivessem na carga genética, na biologia. Estas características eram desvalorizadas pela sociedade ocidental de mercado, onde a competitividade e agressividade (características vistas como naturais e essencialmente masculinas) eram mais valorizadas. Assim naturais. Era interpretado como algo que não poderia ser modificado. Estava na carga genética dos homens, e na sua essência, serem seres superiores e, por outro lado, estava na carga genética das mulheres portanto na sua essência, serem inferiores.
A naturalização das características femininas e masculinas desconsidera que tanto mulheres como homens as adquirem e aprendem na vida social, (em nossa sociedade, hoje ainda antes do nascimento) através das expectativas criadas pelos pais e por todo e meio social, tão logo sabem o sexo do bebê que está para nascer. Essas expectativas, para a maioria das pessoas, traduzidas nas cores e brinquedos dos enxovais, na decoração dos quartos, na escolha dos acessórios e até na forma como a mães se comunica com o bebê em seu ventre, já carregam as formas de entender o que é ser homem e o que é ser mulher e consequentemente o que será ensinado ao novo ser.
A relação direta entre as desigualdades sociais e a biologia, explicando as diferenças como uma contingência da natureza, ainda é frequente nas falas e atitudes das pessoas. Nos dias de hoje, ainda são comuns matérias de jornais ou revistas, enfocando as diferenças biológicas entre homens e mulheres, tamanho ou peso do cérebro, número de neurônios, capacidade intelectual para números ou habilidade natural para determinadas aprendizagens, como tentativas de “provar cientificamente o porquê das desigualdades entre o masculino e o feminino”. (AUAD, 2006, p. 14)
Citeli (2001, p. 132) complementa:
... desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenças de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de gênero. Estabelecer a distinção entre os componentes – natural/biológico em relação a sexo e social/cultural em relação a gênero – foi, e continua sendo, um recurso utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mulheres, corporal, intelectual e moralmente.
Esta postura leva à posição de que é preciso distinguir sexo de gênero, pois não são a mesma coisa e devem ser vistos como fenômenos que nem sempre têm uma relação direta e determinista.

Distinção entre sexo e gênero
“Sexo” é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É preciso descolar o sexo do gênero para entender as questões culturais que envolvem os comportamentos e características femininas e masculinas nas mais diferentes sociedade e culturas. Considerar o gênero como uma contingência do sexo biológico é uma postura reducionista, pois torna limitado o desenvolvimento total das pessoas, direcionando-as aos ditames da natureza, levando a interpretações universais que não cabem nos fatos próprios da cultura.  Para Diniz, Vasconcelos e Miranda (2004, p. 27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações”.
Utilizando-nos da referência de Costa, 1994, que faz uma revisão de literatura sobre as formas com que o conceito de gênero foi entendido no meios acadêmicos, podemos dizer que, diante da dificuldade de categorizar as questões de gênero com base nas diferenças sexuais, a autora explica que o meio acadêmico foi trilhando outros caminhos para a construção de conceito de gênero. Buscando outras interpretações, tais como: “... papéis dicotimizados, gênero como uma variável psicológica, como sistemas culturais e como relacional” (COSTA, 1994, p. 147), foi possível compreender que gênero e sexo não possuem uma relação unívoca, mas que a complexidade do fenômeno é bem maior.
Sexualidade e gênero na escola
A instituição escolar pode e deve contribuir para uma educação cidadã e libertadora que contemple a dimensão sexual, a diversidade, os direitos humanos e a multiculturalidade. Todavia, para que isso ocorra é necessário a implementação de novas práticas pedagógicas.
A sexualidade e o gênero – em constante construção – fazem parte das pessoas que compõe e comunidade escolar. Mesmo que a educação não assuma formalmente esse debate, ele está permeando as relações entre docentes e discentes. Para Louro (2007), a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas social e política, sendo construída ao longo de toda uma vida, de muitos modos, por todos sujeitos, particularmente, os envolvidos no processo educacional.
Se é papel da escola tratar da sexualidade, como essa deve ser abordada? Docentes se sentem preparados para isso? Quais as dificuldades e obstáculos que estariam impedindo a inserção da temática” gênero e sexualidade” na escola?
Relatos dos participantes do curso “Gênero e Sexualidade” confirmam a dificuldade em se trabalhar a temática sexualidade e gênero:
Existe dificuldade para se trabalhar o assunto sexualidade em sala de aula, por conta do preconceito, por falta de preparo e informação dos professores, questões religiosas, construção social. Não existe preparação, cursos na academia sobre o tema. A sociedade é formada por instituições que têm seus princípios construídos historicamente, que tendem a transformar a sexualidade em tabu. (PARTICIPANTE 1)
Os participantes do curso apontaram dos fatores relevantes que dificultam o debate do tema:
a)        Resistência familiar – pais e mães rejeitam a ideia de que seus filhos e filhas tenham informações a respeito, temendo que a sexualidade seja estimulada;
b)        Professores não se sentem preparados, tanto para enfrentar as resistências ao tema quanto para abordá-lo, que acaba restrito a docentes da área Biológica e, por consequência, também focado aos aspectos biológicos.
No que se refere á tolerância com a diversidade, a fala da Participante 2 expressa um sentimento comum:
Não [a escola não é tolerante]. É preciso enfrentar o sexismo, o machismo, a homofobia e racismo nas escolas, a partir da aquisição de conhecimentos, mudanças de posturas e da luta por políticas públicas educacionais que apoiem o trabalho pedagógico. (PARTICIPANTE 2)

Para reverter a ausência de discussão sistematizadora a respeito da sexualidade, bem como o tratamento preconceituoso que é dado ao tema, o protagonista dessa mudança – a professora ou professor – precisa ter domínio sobre o assunto, refletir e problematizar essa questão, assumindo a importância desse debate para a formação de gerações futuras, bem como a relevância de uma educação calcada em valores humanos e no respeito aos direitos individuais e coletivos, eliminando qualquer tipo de discriminação do ambiente escolar.
Para Whitaker (1989), o fato de educadores e educadoras não dominarem a problemática de gênero contribui para a continuidade de velhas crenças impregnadas de ideologias desvalorizadoras do papel da mulher na “história”, o que se encontra nos currículos ou na forma como esses são apresentados, trazendo uma visão masculina do universo.
Mais do que rever o currículo escolares, há que se repensar na formação docente e enfrentar o preconceito e as violências de gênero que, muitas vezes, os próprios professores enfrentam no dia a dia de trabalho. Urgente também repensar o masculino e o feminino frente a uma realidade social que não comporta mais modelos duais e discriminatórios. A realidade tem exigido posturas educacionais abertas que permitam o pleno desenvolvimento humano. Conforme artigo da UNICEF (1999), se a educação das meninas e adolescentes tiver como parâmetro apenas a maternidade e o casamento, dificilmente, na fase adulta, elas emitirão suas opiniões na sociedade ou mesmo concorrerão a um cargo político, pois, tenderão a assimilar, por meio da socialização, que essas ações são para homens.
Estereótipos e preconceitos marcam a educação. A escola reproduz muito do que a sociedade tem esperado de comportamentos masculinos e femininos. A delicadeza, a fragilidade, a discrição, a passividade, o pudor e a emoção são ensinados para as meninas. Em contrapartida, dos meninos, espera-se competitividade, agressividade, força física e racionalidade. Sob a alegação de que são características masculinas. De ambos os sexos, espera-se relações heterossexuais, consideradas como a “única” e “correta” de vivência da sexualidade. Constroem-se dois mundos – o real e o imaginário – tão díspares não ajudam a construir relações igualitárias numa realidade na qual homens e mulheres vivem juntos e que nem sempre (ou quase nunca) se enquadram nesses padrões. Qual é o espaço das pessoas que não se enquadram nesses modelos? A escola pode desconsiderar que a realidade não comporta um modelo único?
A sociedade tem imposto padrões de gênero e modelos de sexualidade que impedem o desenvolvimento individual, social e político de muitas pessoas – particularmente daqueles indivíduos que não se “encaixam” no modelo hegemônico. A imposição de padrões fixos e a intolerância com a diversidade têm gerado discriminação, ódio, preconceito e violência – questões que não contribuem nem para o desenvolvimento humano, tampouco para o social de uma nação.

Gênero e sexualidade: é possível iniciar o debate na escola?
O conhecimento da realidade na qual a escola está inserida é condição preliminar de qualquer atividade docente envolvendo as temáticas de gênero e sexualidade. Um bom diagnóstico indicará as demandas, sendo sempre necessário que se tenha cuidado com propostas prontas e milagrosas que possam afrontar diretamente a cultura local e gerara resistências, afastando qualquer possibilidade de atuação na área.
Na sala de aula, notícias em revistas e jornais podem exemplificar violências contra mulheres, crianças, homossexuais, negros e pobres. A consideração de que essas pessoas não são “outros”, mas que a violação de seus direitos é a violação do direito de todos, pode ser uma questão óbvia, mas que nem sempre é entendida. Uma sociedade sem violência – desejo coletivo – exige que esse tipo de manifestação não seja tolerado, independente da vítima. A reflexão sobre tais questões apontará caminhos, mostrando aos educandos, sejam esses meninos ou meninas, que a violência, preconceito, sexismo, homofobia, misoginia ou racismo não são naturais, sendo possível desconstruí-los, contribuindo para a realização de uma sociedade com novos parâmetros, o respeito à diversidade.
O docente é o protagonista central da educação – uma vez que planeja, avalia, implementa propostas, educa, interfere sobre a realidade -, o que sempre exigiu de sua postura profissional profundos conhecimentos. Dessa forma, coloca-se a sua frente um novo desafio: ensinar sobre conteúdos e temas que, numa perspectiva tradicional, não fazem parte da sua área de formação. Sabemos ser impossível ensinar aquilo que não conhecemos, por isso, a viabilidade do desenvolvimento de trabalho com as temáticas aqui abordadas só será possível com investimentos na formação de educadores.
Destaca-se a importância dessa formação, pois mudanças nas concepções e práticas escolares dependem, sobretudo, de preparação, de sensibilização docente. A inclusão de temas como gênero e sexualidade nos cursos regulares e de educação continuada oferecerá base teórica e metodológica para que o docente tenha segurança para apresentar e debater questões que, por sua relevância, não podem ser tratadas de qualquer maneira. Esse tipo de ação também possibilitará que educadores enfrentem situações que aparecem no seu cotidiano e que exigem respostas educacionais: discriminações de gênero, homofobia, sexismo, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis, aborto, etc.
A formação continuada deve ter como ponto de partida a realidade do trabalho docente. Pretender formar docentes, sem ouvir demandas ou conhecer a realidade educacional, é iniciar um trabalho menores possibilidades de suprir expectativas e correr o risco de não atingir os reais objetivos de uma capacitação: preparar o professor e a professora para a intervenção pedagógica.
Essa formação é desafiadora, abrindo possibilidade para que os docentes revejam suas práticas, suas formas de ensinar e aprender, interagir e significar o conhecimento em todas as suas dimensões, integrar os conteúdos e associá-los á vida real. Isso contribuirá para o desenvolvimento de um trabalho amplo, não voltado apenas para o cumprimento de metas e conteúdos, mas para o desenvolvimento pessoal de cada discente e para o desenvolvimento social do país.
Os temas se renovam a cada dia, exemplificamos alguns que podem ser trabalhados na escola: aborto; fetos anencefálicos; direito à vida (do feto e da mãe); autonomia sobre o corpo; controle de natalidade; métodos contraceptivos; saúde materna; mortalidade materna; câncer de útero, mama ou próstata; planejamento familiar; contracepção; concepção; adoção; início da vida; pesquisas com células-tronco; direitos sexuais e reprodutivos; violência de gênero; doméstica e contra a mulher; pedofilia; parto natural; cesárea; barriga de aluguel; fertilização in vitro; bebê de proveta; início da vida sexual de homens e mulheres; descoberta do corpo; cuidados com o corpo; união homoafetiva; mudança de sexo; maternidade responsável; paternidade responsável, etc.
Para a educação não há “receitas prontas”, a realidade desvelará questões latentes e caberá aos docentes a definição do método que melhor se adapta ao assunto e à realidade de seu trabalho. Temas como gênero e sexualidade não pretendem e tampouco devem substituir os conteúdos “tradicionais” das disciplinas que compõe o currículo escolar. Uma das possibilidades consiste no tratamento como tema transversal, forma que possibilita a inserção dessas questões sociais presentes no dia a dia do estudante e em debate na sociedade, sem deixar “de lado” outros assuntos tão importantes quanto. Muitas dessas questões revelam preocupações da sociedade, exigem análise crítica e posicionamento do grupo discente, mas podem ser trabalhadas de forma articulada com outros temas já tratados nas disciplinas escolares.
Se é primordial saber trabalhar gênero e sexualidade, pois, demandas sobre a temática surgirão, não sendo possível abster-se diante delas, também é necessário refletir a respeito de conhecimento que está sendo reproduzido e construído pela escola. O rompimento com qualquer determinismo e com padrões e modelos hegemônicos, abrindo para a aceitação de propostas pedagógicas que visem á interação das próprias dimensões humanas, dos sujeitos e a construção de uma sociedade humana e justa.

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