Livro: Construindo a igualdade na diversidade: gênero
e sexualidade na escola.
Autoras: Nanci Stancki da Luz, Marilia Gomes de
Carvalho e Lindamir Salete Casagrande.
Edição: UTFPR, Curitiba, 2009.
P. 21 a 24 e 38 a 43
Gênero:
Considerações sobre o conceito
“Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação a respeito de seu significado. Serve para classificar fenômenos os mais diversos tais como gêneros de literatura, de cinema, de música, dos seres vivos na escala biológica, enfim é um termo classificatório.”
A
construção social do gênero é muito mais complexa do que simplesmente uma
classificação das pessoas em mulheres ou homens. No campo das Ciências Sociais
a complexidade é ainda maior porque depende das diferentes correntes teóricas
que interpretam o gênero (mulher/homem) de formas diversas, ora considerando-o
diretamente relacionado ao sexo, ou seja feminino=gênero feminino e sexo
masculino=gênero masculino, ora desvinculando o gênero do sexo, sem que haja
uma relação direta entre estes dois fenômenos. Para outras correntes há dois
sexos, porém múltiplos gêneros.
O
termo gênero possui portanto muitos significados, de acordo com as diferentes
abordagens que existem sobre o fenômeno das construção social do masculino e do
feminino pela sociedade e pela cultura. O conceito de gênero apresenta,
diferentes concepções, diferentes focos de análise conforme, as bases teóricas
que lhe servem de sustentação.
Nem
sempre este foi o termo utilizado pelos cientistas da sociedade que até
recentemente (anos 60) não se preocupavam com a construção social de mulheres e
homens. Na verdade, no mundo acadêmico, o termo gênero surgiu no momento em que
pesquisadores feministas buscavam, através dos chamados estudos sobre mulheres,
desnaturalizar a condição da mulher na sociedade (SIMÃO, 2005).
Foram
estudos feministas os que inicialmente tinham a intenção de desnaturalizar as
condições das mulheres na sociedade, desconstruir a ideia de que tudo aquilo
que se refere à mulher está na sua natureza feminina, ou seja, estes estudos
problematizam a ideia de que determinadas características são de essência feminina
e outras são de essência masculina. Nessa linha de pensamento fica entendido
como natural e da sua essência que a mulher seja mãe, natural e da sua essência
que seja delicada, sensível obediente, amorosa, afetiva, etc, como se tais
características estivessem na carga genética, na biologia. Estas
características eram desvalorizadas pela sociedade ocidental de mercado, onde a
competitividade e agressividade (características vistas como naturais e
essencialmente masculinas) eram mais valorizadas. Assim naturais. Era
interpretado como algo que não poderia ser modificado. Estava na carga genética
dos homens, e na sua essência, serem seres superiores e, por outro lado, estava
na carga genética das mulheres portanto na sua essência, serem inferiores.
A
naturalização das características femininas e masculinas desconsidera que tanto
mulheres como homens as adquirem e aprendem na vida social, (em nossa
sociedade, hoje ainda antes do nascimento) através das expectativas criadas
pelos pais e por todo e meio social, tão logo sabem o sexo do bebê que está
para nascer. Essas expectativas, para a maioria das pessoas, traduzidas nas
cores e brinquedos dos enxovais, na decoração dos quartos, na escolha dos
acessórios e até na forma como a mães se comunica com o bebê em seu ventre, já
carregam as formas de entender o que é ser homem e o que é ser mulher e
consequentemente o que será ensinado ao novo ser.
A
relação direta entre as desigualdades sociais e a biologia, explicando as
diferenças como uma contingência da natureza, ainda é frequente nas falas e
atitudes das pessoas. Nos dias de hoje, ainda são comuns matérias de jornais ou
revistas, enfocando as diferenças biológicas entre homens e mulheres, tamanho
ou peso do cérebro, número de neurônios, capacidade intelectual para números ou
habilidade natural para determinadas aprendizagens, como tentativas de “provar
cientificamente o porquê das desigualdades entre o masculino e o feminino”. (AUAD,
2006, p. 14)
Citeli
(2001, p. 132) complementa:
... desnaturalizar hierarquias de poder
baseadas em diferenças de sexo tem sido um dos eixos centrais dos estudos de
gênero. Estabelecer a distinção entre os componentes – natural/biológico em
relação a sexo e social/cultural em relação a gênero – foi, e continua sendo,
um recurso utilizado pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de
toda ordem que há séculos sustentam argumentos biologizantes para desqualificar
as mulheres, corporal, intelectual e moralmente.
Esta
postura leva à posição de que é preciso distinguir sexo de gênero, pois não são
a mesma coisa e devem ser vistos como fenômenos que nem sempre têm uma relação
direta e determinista.
Distinção
entre sexo e gênero
“Sexo”
é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É preciso descolar o
sexo do gênero para entender as questões culturais que envolvem os
comportamentos e características femininas e masculinas nas mais diferentes
sociedade e culturas. Considerar o gênero como uma contingência do sexo
biológico é uma postura reducionista, pois torna limitado o desenvolvimento
total das pessoas, direcionando-as aos ditames da natureza, levando a
interpretações universais que não cabem nos fatos próprios da cultura. Para Diniz, Vasconcelos e Miranda (2004, p.
27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social, aprendido,
representado, institucionalizado e transmitido ao longo de gerações”.
Utilizando-nos
da referência de Costa, 1994, que faz uma revisão de literatura sobre as formas
com que o conceito de gênero foi entendido no meios acadêmicos, podemos dizer
que, diante da dificuldade de categorizar as questões de gênero com base nas
diferenças sexuais, a autora explica que o meio acadêmico foi trilhando outros
caminhos para a construção de conceito de gênero. Buscando outras interpretações,
tais como: “... papéis dicotimizados, gênero como uma variável psicológica,
como sistemas culturais e como relacional” (COSTA, 1994, p. 147), foi possível compreender
que gênero e sexo não possuem uma relação unívoca, mas que a complexidade do
fenômeno é bem maior.
Sexualidade
e gênero na escola
A
instituição escolar pode e deve contribuir para uma educação cidadã e
libertadora que contemple a dimensão sexual, a diversidade, os direitos humanos
e a multiculturalidade. Todavia, para que isso ocorra é necessário a
implementação de novas práticas pedagógicas.
A
sexualidade e o gênero – em constante construção – fazem parte das pessoas que
compõe e comunidade escolar. Mesmo que a educação não assuma formalmente esse
debate, ele está permeando as relações entre docentes e discentes. Para Louro
(2007), a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas social e política,
sendo construída ao longo de toda uma vida, de muitos modos, por todos sujeitos,
particularmente, os envolvidos no processo educacional.
Se é
papel da escola tratar da sexualidade, como essa deve ser abordada? Docentes se
sentem preparados para isso? Quais as dificuldades e obstáculos que estariam
impedindo a inserção da temática” gênero e sexualidade” na escola?
Relatos
dos participantes do curso “Gênero e Sexualidade” confirmam a dificuldade em se
trabalhar a temática sexualidade e gênero:
Existe dificuldade para se trabalhar o
assunto sexualidade em sala de aula, por conta do preconceito, por falta de
preparo e informação dos professores, questões religiosas, construção social.
Não existe preparação, cursos na academia sobre o tema. A sociedade é formada
por instituições que têm seus princípios construídos historicamente, que tendem
a transformar a sexualidade em tabu. (PARTICIPANTE 1)
Os
participantes do curso apontaram dos fatores relevantes que dificultam o debate
do tema:
a)
Resistência familiar – pais e mães rejeitam a
ideia de que seus filhos e filhas tenham informações a respeito, temendo que a
sexualidade seja estimulada;
b)
Professores não se sentem preparados, tanto
para enfrentar as resistências ao tema quanto para abordá-lo, que acaba
restrito a docentes da área Biológica e, por consequência, também focado aos
aspectos biológicos.
No
que se refere á tolerância com a diversidade, a fala da Participante 2 expressa
um sentimento comum:
Não [a escola não é tolerante]. É
preciso enfrentar o sexismo, o machismo, a homofobia e racismo nas escolas, a
partir da aquisição de conhecimentos, mudanças de posturas e da luta por
políticas públicas educacionais que apoiem o trabalho pedagógico. (PARTICIPANTE
2)
Para
reverter a ausência de discussão sistematizadora a respeito da sexualidade, bem
como o tratamento preconceituoso que é dado ao tema, o protagonista dessa
mudança – a professora ou professor – precisa ter domínio sobre o assunto,
refletir e problematizar essa questão, assumindo a importância desse debate
para a formação de gerações futuras, bem como a relevância de uma educação
calcada em valores humanos e no respeito aos direitos individuais e coletivos,
eliminando qualquer tipo de discriminação do ambiente escolar.
Para
Whitaker (1989), o fato de educadores e educadoras não dominarem a problemática
de gênero contribui para a continuidade de velhas crenças impregnadas de
ideologias desvalorizadoras do papel da mulher na “história”, o que se encontra
nos currículos ou na forma como esses são apresentados, trazendo uma visão masculina
do universo.
Mais
do que rever o currículo escolares, há que se repensar na formação docente e
enfrentar o preconceito e as violências de gênero que, muitas vezes, os
próprios professores enfrentam no dia a dia de trabalho. Urgente também
repensar o masculino e o feminino frente a uma realidade social que não
comporta mais modelos duais e discriminatórios. A realidade tem exigido
posturas educacionais abertas que permitam o pleno desenvolvimento humano.
Conforme artigo da UNICEF (1999), se a educação das meninas e adolescentes
tiver como parâmetro apenas a maternidade e o casamento, dificilmente, na fase
adulta, elas emitirão suas opiniões na sociedade ou mesmo concorrerão a um
cargo político, pois, tenderão a assimilar, por meio da socialização, que essas
ações são para homens.
Estereótipos
e preconceitos marcam a educação. A escola reproduz muito do que a sociedade
tem esperado de comportamentos masculinos e femininos. A delicadeza, a
fragilidade, a discrição, a passividade, o pudor e a emoção são ensinados para
as meninas. Em contrapartida, dos meninos, espera-se competitividade,
agressividade, força física e racionalidade. Sob a alegação de que são
características masculinas. De ambos os sexos, espera-se relações
heterossexuais, consideradas como a “única” e “correta” de vivência da
sexualidade. Constroem-se dois mundos – o real e o imaginário – tão díspares não
ajudam a construir relações igualitárias numa realidade na qual homens e
mulheres vivem juntos e que nem sempre (ou quase nunca) se enquadram nesses
padrões. Qual é o espaço das pessoas que não se enquadram nesses modelos? A
escola pode desconsiderar que a realidade não comporta um modelo único?
A
sociedade tem imposto padrões de gênero e modelos de sexualidade que impedem o
desenvolvimento individual, social e político de muitas pessoas – particularmente
daqueles indivíduos que não se “encaixam” no modelo hegemônico. A imposição de
padrões fixos e a intolerância com a diversidade têm gerado discriminação,
ódio, preconceito e violência – questões que não contribuem nem para o
desenvolvimento humano, tampouco para o social de uma nação.
Gênero
e sexualidade: é possível iniciar o debate na escola?
O
conhecimento da realidade na qual a escola está inserida é condição preliminar
de qualquer atividade docente envolvendo as temáticas de gênero e sexualidade.
Um bom diagnóstico indicará as demandas, sendo sempre necessário que se tenha
cuidado com propostas prontas e milagrosas que possam afrontar diretamente a
cultura local e gerara resistências, afastando qualquer possibilidade de
atuação na área.
Na
sala de aula, notícias em revistas e jornais podem exemplificar violências
contra mulheres, crianças, homossexuais, negros e pobres. A consideração de que
essas pessoas não são “outros”, mas que a violação de seus direitos é a
violação do direito de todos, pode ser uma questão óbvia, mas que nem sempre é
entendida. Uma sociedade sem violência – desejo coletivo – exige que esse tipo
de manifestação não seja tolerado, independente da vítima. A reflexão sobre
tais questões apontará caminhos, mostrando aos educandos, sejam esses meninos
ou meninas, que a violência, preconceito, sexismo, homofobia, misoginia ou
racismo não são naturais, sendo possível desconstruí-los, contribuindo para a
realização de uma sociedade com novos parâmetros, o respeito à diversidade.
O docente
é o protagonista central da educação – uma vez que planeja, avalia, implementa
propostas, educa, interfere sobre a realidade -, o que sempre exigiu de sua
postura profissional profundos conhecimentos. Dessa forma, coloca-se a sua
frente um novo desafio: ensinar sobre conteúdos e temas que, numa perspectiva
tradicional, não fazem parte da sua área de formação. Sabemos ser impossível
ensinar aquilo que não conhecemos, por isso, a viabilidade do desenvolvimento
de trabalho com as temáticas aqui abordadas só será possível com investimentos
na formação de educadores.
Destaca-se
a importância dessa formação, pois mudanças nas concepções e práticas escolares
dependem, sobretudo, de preparação, de sensibilização docente. A inclusão de
temas como gênero e sexualidade nos cursos regulares e de educação continuada
oferecerá base teórica e metodológica para que o docente tenha segurança para
apresentar e debater questões que, por sua relevância, não podem ser tratadas
de qualquer maneira. Esse tipo de ação também possibilitará que educadores enfrentem
situações que aparecem no seu cotidiano e que exigem respostas educacionais:
discriminações de gênero, homofobia, sexismo, gravidez na adolescência, doenças
sexualmente transmissíveis, aborto, etc.
A
formação continuada deve ter como ponto de partida a realidade do trabalho
docente. Pretender formar docentes, sem ouvir demandas ou conhecer a realidade
educacional, é iniciar um trabalho menores possibilidades de suprir
expectativas e correr o risco de não atingir os reais objetivos de uma
capacitação: preparar o professor e a professora para a intervenção pedagógica.
Essa
formação é desafiadora, abrindo possibilidade para que os docentes revejam suas
práticas, suas formas de ensinar e aprender, interagir e significar o conhecimento
em todas as suas dimensões, integrar os conteúdos e associá-los á vida real.
Isso contribuirá para o desenvolvimento de um trabalho amplo, não voltado
apenas para o cumprimento de metas e conteúdos, mas para o desenvolvimento pessoal
de cada discente e para o desenvolvimento social do país.
Os
temas se renovam a cada dia, exemplificamos alguns que podem ser trabalhados na
escola: aborto; fetos anencefálicos; direito à vida (do feto e da mãe);
autonomia sobre o corpo; controle de natalidade; métodos contraceptivos; saúde
materna; mortalidade materna; câncer de útero, mama ou próstata; planejamento
familiar; contracepção; concepção; adoção; início da vida; pesquisas com
células-tronco; direitos sexuais e reprodutivos; violência de gênero; doméstica
e contra a mulher; pedofilia; parto natural; cesárea; barriga de aluguel;
fertilização in vitro; bebê de
proveta; início da vida sexual de homens e mulheres; descoberta do corpo;
cuidados com o corpo; união homoafetiva; mudança de sexo; maternidade responsável;
paternidade responsável, etc.
Para
a educação não há “receitas prontas”, a realidade desvelará questões latentes e
caberá aos docentes a definição do método que melhor se adapta ao assunto e à
realidade de seu trabalho. Temas como gênero e sexualidade não pretendem e
tampouco devem substituir os conteúdos “tradicionais” das disciplinas que
compõe o currículo escolar. Uma das possibilidades consiste no tratamento como
tema transversal, forma que possibilita a inserção dessas questões sociais
presentes no dia a dia do estudante e em debate na sociedade, sem deixar “de
lado” outros assuntos tão importantes quanto. Muitas dessas questões revelam
preocupações da sociedade, exigem análise crítica e posicionamento do grupo
discente, mas podem ser trabalhadas de forma articulada com outros temas já
tratados nas disciplinas escolares.
Se é
primordial saber trabalhar gênero e sexualidade, pois, demandas sobre a
temática surgirão, não sendo possível abster-se diante delas, também é
necessário refletir a respeito de conhecimento que está sendo reproduzido e
construído pela escola. O rompimento com qualquer determinismo e com padrões e
modelos hegemônicos, abrindo para a aceitação de propostas pedagógicas que
visem á interação das próprias dimensões humanas, dos sujeitos e a construção
de uma sociedade humana e justa.
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